Supressio e Surrectio no Direito Civil: Entendendo os Efeitos da Renúncia Tácita e do Surgimento de Direitos no Contexto Contratual

Supressio e Surrectio no Direito Civil: Entendendo os Efeitos da Renúncia Tácita e do Surgimento de Direitos no Contexto Contratual

Introdução
No universo jurídico, a dinâmica dos contratos e das relações obrigacionais é pautada por princípios que garantem a segurança e a previsibilidade nas interações entre as partes envolvidas. Dois conceitos que ganham cada vez mais relevância nesse contexto são a supressio e a surrectio, aspectos da boa-fé que tratam da renúncia tácita de direitos e do surgimento de novos direitos a partir de práticas repetidas no tempo. Com base no art. 330 do Código Civil e fundamentado em decisões judiciais, esses conceitos não apenas influenciam a aplicação de direitos e obrigações, mas também são essenciais para promover o equilíbrio e a justiça nas relações contratuais.
Este artigo explora a natureza da supressio e da surrectio, abordando como essas figuras jurídicas afetam o comportamento das partes em um contrato e, mais importante, o que isso significa para as relações comerciais contemporâneas. Entender esses conceitos é crucial para advogados, empresários e qualquer pessoa envolvida em negociações contratuais, já que esses princípios podem mudar o curso de uma relação obrigacional e, em muitos casos, determinar o desfecho de disputas judiciais.

O Que é Supressio e Qual o Seu Impacto nas Obrigações?
Definindo a Supressio.
A supressio, refere-se à perda de um direito ou de uma posição jurídica em função do seu não exercício ao longo do tempo. Isso ocorre quando, por um período prolongado, uma das partes de uma relação jurídica deixa de exercer um direito que lhe pertence, e a outra parte, confiando nesse comportamento, ajusta suas expectativas e condutas.
Em termos práticos, a supressio implica que o titular de um direito perde a possibilidade de exercê-lo se, por inércia, passar a impressão de que esse direito foi abandonado. Não há necessidade de uma renúncia expressa: a inação prolongada é suficiente para configurar a supressão desse direito.
Por exemplo, imagine que um credor tenha o direito de exigir o pagamento de uma dívida em seu próprio domicílio, conforme estabelecido em contrato. No entanto, por anos, ele aceita o pagamento no domicílio do devedor. Esse comportamento pode, ao longo do tempo, gerar uma expectativa no devedor de que o credor não mais exigirá o cumprimento original. Nesse caso, o credor pode perder o direito de exigir que os pagamentos ocorram em seu próprio domicílio, em razão da supressio.

Base Legal: O artigo 330 do Código Civil
O artigo 330 do Código Civil é claro ao determinar que, se houver o costume de o credor receber a obrigação no domicílio do devedor, mesmo que o contrato preveja o contrário, a obrigação passará a ser considerada como quesível — ou seja, aquela cujo pagamento deve ocorrer no domicílio do devedor. Esse é um exemplo prático de aplicação da supressio, onde a prática reiterada modifica a forma como a obrigação é cumprida.
Em outras palavras, o direito de o credor exigir o pagamento no seu domicílio se esvai, dando lugar à expectativa de o devedor continuar pagando onde sempre pagou.

Consequências da Supressio
O efeito mais imediato da supressio é a perda de direitos pelo titular que, devido à sua inércia, gera uma situação de confiança legítima na outra parte. Essa confiança é protegida pela boa-fé objetiva, um dos pilares das relações contratuais.
Além disso, a supressio serve como um importante mecanismo de equilíbrio nas relações jurídicas, ao impedir que uma das partes possa, de forma abrupta, alterar suas exigências após um longo período de comportamentos que indicavam o contrário. Dessa forma, ela evita a criação de surpresas desagradáveis e protege a previsibilidade nas relações contratuais.

Surrectio: O Surgimento de Direitos pela Efetividade Social
O Que é Surrectio?
Se a supressio é a renúncia tácita de um direito, a surrectio, é o fenômeno oposto. A surrectio ocorre quando, a partir de uma prática reiterada e aceita por ambas as partes, surge um novo direito que antes não existia juridicamente. Esse direito decorre do princípio da efetividade social, ou seja, dos usos, costumes e comportamentos que, ao longo do tempo, se tornam juridicamente relevantes.
Voltando ao exemplo do credor e do devedor, se o credor, ao longo do tempo, aceita que o pagamento seja feito no domicílio do devedor, surge para o devedor um novo direito de continuar efetuando o pagamento naquele local. Esse novo direito, criado pela surrectio, antes inexistente, passa a ter validade jurídica devido à prática reiterada.

Surrectio e a Boa-fé Objetiva
A surrectio está intimamente ligada ao princípio da boa-fé objetiva. De acordo com esse princípio, as partes de uma relação obrigacional devem agir com lealdade, considerando não apenas o que foi estipulado no contrato, mas também as expectativas legítimas que foram geradas ao longo da relação.
A criação de novos direitos pela surrectio, portanto, protege a parte que, com base no comportamento da outra, desenvolveu uma expectativa legítima de que essa conduta seria mantida. Trata-se de um mecanismo que visa equilibrar a rigidez contratual com a realidade das práticas sociais.

Casos Práticos: Decisões Judiciais Sobre Supressio e Surrectio
Jurisprudência e a Aplicação do Princípio
A jurisprudência brasileira tem acolhido amplamente os princípios da supressio e da surrectio, em especial nos casos em que há um descompasso entre o comportamento de uma das partes e os direitos estipulados em contrato. O Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, já decidiu em favor de devedores que, por longo tempo, pagaram suas dívidas no domicílio e, de repente, foram surpreendidos por uma cobrança exigindo que os pagamentos fossem feitos em outro local, conforme estabelecido no contrato. O tribunal aplicou o princípio da supressio, determinando que o credor não poderia alterar a forma de cumprimento da obrigação após tanto tempo de prática consolidada.
“Obrigação propter rem. Natureza obrigacional. Competência do lugar do pagamento. Pagamento reiteradamente realizado no foro de Curitiba. Renúncia ao foro previsto em convenção de condomínio. Incidência, por analogia, do art. 330 do Código Civil. Recurso conhecido e provido” (TJPR, Agravo de Instrumento n. 1337258-0, 9ª Câmara Cível, Curitiba, Rel. Juiz Conv. Rafael Vieira de Vasconcellos Pedroso, j. 16.04.2015, DJPR 07.05.2015, p. 216).
Outro exemplo vem de contratos de locação, onde locadores que aceitam por anos o pagamento do aluguel fora do prazo estipulado no contrato perdem o direito de cobrar multas por atraso. Essa perda de direito decorre da supressio, enquanto a surrectio cria para o locatário o direito de continuar efetuando o pagamento no prazo praticado, mas não previsto inicialmente. Nesse sentido, ao julgar a Apelação Cível 2009.001.17714, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em julgado de relatoria do Des. Ronaldo Álvaro Martins, de 04/09/2009, entendeu que “a aceitação, pelo locador, de valor de aluguel inferior ao ajustado implica a supressio do direito de exigir as diferenças, bem como de requerer o despejo do locatário que, em face da surrectio correspondente, passa a ter o direito de continuar pagando os alugueis no valor tacitamente ajustado.”
Essas decisões mostram como o direito brasileiro se preocupa em harmonizar as relações contratuais, levando em consideração não apenas o que está no papel, mas também a forma como as partes efetivamente se comportam ao longo do tempo.
Também o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou sobre a aplicação desses quando da não cobrança reiterada da correção monetária em contratos de prestação continuada: Veja-se: “Correção monetária. Renúncia. O recorrente firmou com a recorrida o contrato de prestação de serviços jurídicos com a previsão de correção monetária anual. Sucede que, durante os seis anos de validade do contrato, o recorrente não buscou reajustar os valores, o que só foi perseguido mediante ação de cobrança após a rescisão contratual (…) Dessarte, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão de exigir retroativamente a correção monetária dos valores que era regularmente dispensada, pleito que, se acolhido, frustraria uma expectativa legítima construída e mantida ao longo de toda a relação processual, daí se reconhecer presente o instituto da supressio (STJ, REsp 1.202.514/RS, Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 21.06.2011).”

Importância de Conhecer Esses Conceitos no Ambiente Empresarial
Implicações Práticas para Empresas e Contratos
Para empresas, entender os conceitos de supressio e surrectio é fundamental para garantir que os contratos sejam interpretados e aplicados de maneira justa e eficaz. Muitas vezes, práticas comerciais que se afastam do que foi formalmente contratado podem criar novos direitos e obrigações, trazendo implicações legais inesperadas. Portanto, é crucial que as empresas estejam atentas ao histórico de comportamento entre as partes contratantes para evitar surpresas judiciais.
Por exemplo, uma empresa que aceita reiteradamente entregas de mercadorias fora do prazo estipulado no contrato pode perder o direito de exigir a pontualidade no futuro. Além disso, práticas comerciais que alteram o local de entrega, pagamento ou outros aspectos contratuais, quando mantidas por tempo suficiente, podem modificar significativamente os termos de um contrato.

Gerenciamento de Riscos Contratuais
Para evitar os efeitos indesejados da supressio e surrectio, é essencial que as empresas mantenham uma gestão rigorosa dos seus contratos e da execução das obrigações. A adoção de políticas claras de monitoramento e cumprimento contratual, bem como a formalização de qualquer mudança nos termos do contrato, são medidas eficazes para mitigar o risco de perder direitos ou gerar novos direitos não previstos.
Empresas que negligenciam a importância da gestão contratual podem se ver em situações de desvantagem jurídica, perdendo a capacidade de exigir o cumprimento estrito dos contratos que celebraram.

Conclusão
A supressio e a surrectio são conceitos fundamentais para o entendimento das relações contratuais no Direito Civil. Enquanto a supressio trata da perda de direitos pela inércia de seu titular, a surrectio permite o surgimento de novos direitos com base em práticas reiteradas. Esses princípios estão profundamente enraizados no conceito de boa-fé objetiva e visam promover o equilíbrio e a justiça nas relações obrigacionais.
Para advogados, empresários e gestores, compreender como esses mecanismos funcionam na prática é essencial para garantir que seus contratos sejam interpretados de forma justa e para evitar surpresas judiciais. A aplicação desses conceitos no mundo dos negócios pode impactar diretamente a segurança jurídica e a previsibilidade nas relações comerciais.
Como recomendação final, é importante que empresas e indivíduos estejam sempre atentos ao histórico de comportamento em suas relações contratuais. Formalizar mudanças nos termos acordados e manter a coerência na aplicação dos direitos e deveres é a melhor forma de evitar a perda de direitos

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